17.06.20 Paulina Caon
Acordo sonolenta para mais um dia. Desde que cheguei a Roma meu sono está desordenado - durmo de madrugada e acordo no horário do almoço. Falência de produtividade, falência de rimto. Medo de perder a estrutura externa, interna, de me entregar à deriva parada da quarentena, medo de perder os prazos, de não fazer. Mas hoje, durmo às três da manhã, acordo às sete porque tenho um dia cheio. De algum jeito, os dois meses e meio em quarentena, o início do desconfinamento na Itália parece ter trazido junto novas demandas, burocráticas ou criativas. Me sinto mais “produtiva”. Fico feliz com isso. Afinal sou uma dessas pessoas privilegiadas, branca, professora universitária, que pode fazer quarentena, tem um salário fixo e me sinto na obrigação constante de devolver de algum modo à sociedade o investimento público feito em mim.
Saímos de casa, minha companheira e eu, levando o lixo para dispensa-lo nos containers da rua, passar pelo parque do bairro e seguir para o supermercado. Esse foi o passeio possível ao longo de toda a quarentena. Utilitário, funcional, seja o que for..., mas foi sempre ele quem garantiu ver o céu, o sol e a chegada da primavera no bairro. Um respiro, um alívio, transbordamento estético e das águas pelos olhos, para além das paredes e janelas altas do pequeno apartamento no porão em que vivemos nesses meses. Assisto as árvores peladas, madeira pura, virarem pura flor, rosa ou branca, depois folhas, verdes ou vermelhas e, por fim, ameixas, figos e cerejas espalhadas nas praças. Escape feliz, mesmo que ofegante dentro da máscara, sentindo o suor se formar dentro do nariz e no bigode.
Esse tempo um pouco suspenso, um pouco engessado me fez repetir perguntas já conhecidas por mim: agora, sim, o que pode um corpo de mulher na cidade vazia em quarentena? O que pode um corpo, talvez junto de outros corpos, para recriar mundos, no aqui e agora, não numa ideia ideal futura? Faremos (nós, do “clube da humanidade”, como diz Krenak) algo diferente do que fizemos até aqui...? Acordo e demoro a dormir quase diariamente escutando o pulsar do coração nos ouvidos, talvez me lembrando de não esquecer essas perguntas.
Hoje e nesses tempos, a volta pra casa e a volta do supermercado sempre envolve vários rituais de limpeza. Deixar a “sujeira” fora da casa, os sapatos, as roupas usadas; senão um banho, lavar as mãos, os braços, o rosto, os óculos; depois, limpar também aquilo que se comprou. De um lado, a percepção de que alguns desses rituais bem poderiam ser parte mais cotidiana da vida, para além da pandemia; de outro, até onde não é apenas ilusão essa extrema assepsia? Em certos momentos, círculo vicioso: a mão limpa que pega no celular sujo para limpa-lo e se suja de novo por tê-lo tocado e suja talvez o pote de desinfetante e tem de ser lavada de novo, bem como o pote... infinitamente...
Pequeno almoço de pizza quadrada e uma fruta; algo rápido porque preciso trabalhar um pouco e entrar na aula sobre os vinte e um estágios da meditação. É o curso que me dei de presente nesse mês para buscar me cuidar um pouco, ver se reencontro algum silêncio mental, se meu coração para de pulsar no ouvido, se me dou tempo de pausa consciente, respiração consciente e não apenas turbilhão de sensações e pensamentos sobre esse tempo “maluco” (como digo) em que estamos.
Uma da tarde. Primeira meditação – FOCO. Nem controle, nem esforço. Permissão, acolhimento; não recusar nada, observar tudo e dar passagem. Entro num estado de vigília, menos controlado de fato, mas um pouco sonolento. Desperto no meio das respirações, trocando sílabas do mantra, alguém montado num cavalo surge no alto de um pequeno barranco e eu me assusto olhando essa imagem debaixo para cima, sobressaltada com a velocidade do cavalo e de meu sonho meio acordada, sentada. Segunda meditação – ABSORÇÃO. Capacidade de estar presente em si mesma, no aqui e agora, e ao mesmo tempo se entregar a um campo maior, universo, espaço sagrado. Relação muito direta com o intangível sem perder o contato com o tangível. O rosto da professora em primeiro plano na tela do Zoom é forte, irradiante; as instruções são firmes numa meditação longa, que me faz acordar de vez pra sustentar a respiração, a postura dos braços, o movimento do umbigo. De olhos fechados sinto a luz do quarto se alterar, finalmente aumenta a sensação de leveza corporal, a respiração mais relaxada na última etapa em sincronia com a mudança da luminosidade. As lágrimas escorrem e não consigo reter os movimentos dos músculos do rosto. Um choro meio inexplicável, menos iluminação e mais, talvez, felicidade por essas pequenas sincronias, minúscula sensação de que algo é possível.
O meio para o final da tarde vem cheio de fome, cansaço do pouco sono, dor na coxo-femural por tanto tempo sentada no computador. Um breve sono, outra comida pequena. O tema do alimento é um capítulo a parte. Desde a casa de família no final da década de 70 até as casas de amigxs e ancestrais (indígenas, caipiras do interior paulista), os fogões, as mesas de comer sempre foram os meus lugares prediletos. Longas refeições com outrxs, longas conversas, sentimento de irmandade, de afetos trocados, amores da vida. A prática de cozinhar junto, receber em casa e oferecer comida se tornou um dos maiores prazeres, linha conectando passado e presente, encontro caloroso e que aquece ao alimentar, zona de nostalgia, mas também de cura.
Sete da noite, 17 de junho de 2020. Aqui também em breve começo a cozinhar o jantar. A cozinha é de novo o centro da pequena casa. Também a única mesa de trabalho, onde escrevo agora. É o lugar de inventar jogos de viver bem, cozinhar coisas novas a cada semana, cuidar de sentir prazeres, talvez, no meu caso, também de compensar algumas ansiedades e incertezas que o momento apresenta. Mas sem dúvida, aumentar a temperatura, mover substâncias e consistências, temperar, cheirar, provar, amar cuidar de mim e da outra mulher da casa (aquela que também me ama cuida), nutrir. Um pouco de prazer, um pouco de pajelança, processamento de experiências, cura,. Surge daí meu totem do habitar[1], carta de tarô, arquétipo do dia, mas talvez também imagem sintética de meu modo de sempre ter feito da cozinha meu modo de cuidar de mim e dxs outrxs.
[1] Cito aqui uma proposta feita por G. Eyassu Jonathan Ganebo, filho de italianxs e filipinxs, estudante do curso de graduação em Arquitetura da Universidade de Roma Três. Ele propõe que o totem do habitar seja uma composição sobre os sentidos do habitar para cada pessoa, um convite para buscar “a beleza do cotidiano e descobrir o poder expressivo das pequenas coisas”.